
Com a quarta-feira de cinzas iniciamos com toda a Igreja o tempo litúrgico da quaresma. Recordamos os 40 dias que Jesus ficou no deserto em oração e penitência em preparação ao serviço que Deus-Pai lhe confiara. “Eu vim para servir” (Mc 10,45) foi desde sempre a convicção de Jesus. Todavia, o “como”, a maneira de viver essa vocação de servidor foi uma escolha pessoal d’Ele, que nesse longo deserto quaresmal Ele conferiu ser a vontade d’Aquele que lhe enviou. Venceu assim, as tentações de fazer do serviço um meio de se servir; do ter, do aparecer e do poder (cf. Mt 1, 12-15).
Anualmente, entre a quarta-feira de cinzas e a quinta-feira santa, os cristãos são chamados a re-fazer com Jesus essa quaresma, descobrindo na liturgia diária, especialmente na liturgia dominical, o caminho percorrido por Jesus. Sim. Porque a caminhada do deserto foi como que síntese-símbolo da caminhada da vida toda de Jesus. Contemplando e vivenciando liturgicamente o Mistério de Jesus, mergulhamos no coração de Deus. E dessa rica experiência mística, orante brota o desejo de conversão, a coragem para a penitência e a disposição para o amor serviço.
Nunca nos esqueçamos, pois, de valorizar e assumir os três exercícios quaresmais apontados por Jesus, na liturgia desta quarta-feira de cinzas: a oração mais intensa, a penitência mais profunda e o amor-serviço (cf. Mc 6,1-6.16-18). Na quaresma rezamos mais. Diariamente damos mais tempo à leitura orante das Escrituras; valorizamos ainda mais nossa própria presença nos Círculos Bíblicos e grupos de casais e jovens para a reflexão comunitária da Palavra de Deus; participamos com fervor de orações comunitárias como as Vias Sacras e Vigílias Eucarísticas; e bebemos, sobretudo das liturgias dominicais.
Os exercícios penitenciais nascem da prática orante a que nos referimos imediatamente. Orar é escutar Deus! A sua Palavra é luz que esclarece e dá calor, provoca um discernimento pessoal mais lúcido e aprofunda o sentido da vida, do viver a partir e em função de Deus mesmo. A consequência é a penitência: deixar de fazer alguma coisa que gosta para deixar de fazer o que Deus não gosta. Eis aí a mortificação quaresmal: conversão do ter mais para o doar-se mais, do aparecer mais para o ser mais e do poder mais para o servir mais. E tudo isso é possível pelo perdão que o Senhor no oferece, sobretudo nesse tempo, pelo Sacramento da Penitência, do Perdão, a confissão.
Quem busca assim, rezar mais para ser mais de Deus e se penitenciar mais para ser mais filho de Deus se sente vivamente impelido a fazer da vida um amor-serviço aos demais, tal qual Jesus. E para tal, anualmente, a Igreja do Brasil, nos propõe os exercícios da Campanha da Fraternidade. Para cada ano um tema específico. Nesse, completando os 50 anos da Constituição Pastoral Gaudium et Spes - promulgada pelo Concílio Vaticano II, para impelir ainda mais os cristãos no serviço à justiça e à paz no mundo – a CNBB nos dá como tema “Fraternidade: Igreja e Sociedade” e lema “Eu vim para servir”. E para que o espírito dessa campanha nos anime sempre nos exercícios da solidariedade libertadora promulgou 2015 como o Ano da Paz.
Concluímos assim, que a Quaresma é para servir. Compete a todos e a cada um dos cristãos amar e servir a Deus no amor-serviço aos irmãos. Caso contrário, transformamos a oração num pieguismo infrutífero e reduzimos a liturgia num entretenimento religioso que ridiculariza Deus. A penitência, por sua vez, fica confinada a um moralismo imbecil que alimenta a vaidade e o poder e despreza os demais. Também o serviço ao próximo que não seja expressão de fé leva ao ativismo febril, à manipulação do outro, a novas formas de dominação, escravidão. Deus é Amor. Amor-serviço, conforme a prática de Jesus, na humilhação e no sofrimento, é expressão amadura de fé. Santa Quaresma!
Medoro, irmão menor – padre pecador